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abril 26, 2025

OS OVOS E O NINHO DA SERPENTE

Sergio Gonzaga de Oliveira (*)

A expressão “ovo da serpente” não é nova. Pelo que se sabe, apareceu pela primeira vez em “Júlio César” de Shakespeare. A peça, provavelmente escrita em 1599, relata o momento em que a incipiente e restrita democracia de Roma estava prestes a sucumbir ao poder imperial de Júlio Cesar. Um grupo de senadores, inconformados com a crescente concentração de poder nas mãos de um ambicioso comandante militar, planejou sua morte em um atentado. Em uma passagem do texto de Shakespeare, Brutus, um dos principais conspiradores, compara Júlio Cesar a “um ovo de serpente que, por sua natureza, uma vez chocado se tornará nocivo; razão pela qual deve ser morto ainda na casca”. Brutus se refere ao mal que causaria à democracia romana a consolidação do poder absoluto de César. Em Shakespeare a referência ao ovo da serpente se dá em um contexto de relações de poder dentro da elite dominante de Roma.

Quase quatro séculos depois, em 1977, Ingmar Bergman usa a expressão de Shakespeare como título de um denso e expressivo filme sobre as fases iniciais da expansão do nazismo na Alemanha, nos anos vinte do século passado. Diferentemente de Shakespeare, em Bergman o contexto econômico e social vivido pelos personagens desempenha um papel relevante. Nos primeiros minutos da película um locutor em off diz: “Um maço de cigarros custa 4 bilhões de marcos e quase todos perderam a fé no futuro e no presente”. 

Com o armistício de 1918, que encerrou as hostilidades da Primeira Guerra Mundial, as principais potências vencedoras impuseram à Alemanha o Tratado de Versalhes assinado em junho de 1919. As reparações de guerra estabelecidas eram tão leoninas que muitos economistas e políticos da época consideraram que seria impossível o seu cumprimento.

No final da guerra a instabilidade em Berlim era tanta que os partidos políticos não puderam se reunir na capital para organizar a vida alemã do pós guerra. Por conta disso, a Assembleia Constituinte se instalou na pequena cidade de Weimar a cerca de 300 km de Berlim e a Constituição foi promulgada em agosto de 1919. Na década seguinte, os elevados pagamentos impostos pelo Tratado de Versalhes, as disputas políticas e as sequelas da guerra tornaram a vida do povo alemão um inferno. Hiperinflação, instabilidade política, fome, miséria e desesperança faziam parte da vida cotidiana.

Bergman retrata bem essa calamidade quando no meio da trama um inspetor de polícia diz: “O câmbio por um dólar é de 5 bilhões de marcos; os franceses ocuparam Ruhr; já pagamos um bilhão em ouro aos britânicos... em Munique Herr Hitler está preparando um golpe de estado com soldados famintos e loucos de uniforme; temos um governo que não sabe para que lado ir; todo mundo tem medo e eu também”.

Como se não bastasse, a crise econômica de 1929, com origem nos EUA, atinge de chofre a Alemanha. A chamada República de Weimar, assolada por dificuldades crescentes, não tem condições mínimas de governabilidade. Nesse contexto um nacionalismo radical conduzido pelo partido nazista de Adolf Hitler, um obscuro ex cabo do exército, é visto pelo desesperançado povo alemão como a única saída para sua agonia.

Incêndio no Parlamento Alemão em 1933 

Até 1928, os nazistas ainda eram minoria no Parlamento alemão. Ocupavam apenas 12 cadeiras. Com a Grande Depressão, em 1930, eles se tornaram o segundo maior partido do país, com 107 cadeiras. Em 1932, já eram a formação política mais popular da Alemanha, com 230 assentos no Parlamento. No rastro dessa ascensão o Presidente Hindenburg, em janeiro de 1933, nomeou Hitler Primeiro Ministro. Nos anos seguintes Hitler desenvolve uma escalada macabra para assumir o poder absoluto e conduzir a Alemanha a um dos maiores desastres da história recente da humanidade. A ascensão do nazismo na Alemanha não é um fenômeno histórico simples, mas os fatos parecem indicar que a degradação econômica e social, bem caracterizada por Bergman, deve ter tido uma contribuição importante para essa tragédia. Na mesma década, na Itália, um processo semelhante instaura um regime autoritário onde os partidos políticos e sindicatos são postos fora da lei. Em um rastro de instabilidade, destruição pela guerra e ressentimento em relação ao Tratado de Versalhes, os fascistas de Mussolini tomam o poder. Quase 100 anos depois, os ovos da serpente estão sendo chocados novamente em ambientes cada vez mais favoráveis à sua eclosão. Nas últimas décadas alguns fenômenos políticos, sociais e econômicos vêm jogando lenha nessa fogueira. A globalização, a desastrada resposta neoliberal, a precarização das relações trabalhistas e a perda de poder dos sindicatos vêm promovendo, a partir dos anos 80 do século passado, um aumento expressivo da concentração de renda nos principais países desenvolvidos (1) (2).

No Brasil não é diferente. Nos últimos 40 anos o crescimento da renda per capita não passou de 0,7% ao ano. Um quase nada. Tomando como referência o rendimento domiciliar per capita publicado em 2020 pelo IBGE na Síntese dos Indicadores Sociais (3), verifica-se que metade da população vive com um valor inferior ao de um salário mínimo. Pode-se afirmar que a maioria vive na pobreza ou em seu entorno. É difícil acreditar que os 400 reais do Auxílio Emergencial ou, mesmo, os 1.212 reais de um salário mínimo sejam suficientes para garantir condições adequadas de cidadania para uma pessoa e sua família. Para se ter uma ideia desse disparate basta lembrar que o salário mínimo necessário para o sustento de uma família, calculado pelo DIEESE em março de 2022, é de R$ 6.394,16.

A Ciência Econômica, em grande medida já conhece os caminhos para retirar da miséria e indigência a maior parte da população. Esse roteiro passa por um projeto de reconstrução nacional com desenvolvimento inclusivo e sustentável. O conceito de desenvolvimento estabelece que o crescimento econômico deve ser acompanhado por uma efetiva distribuição de renda, preservação do meio ambiente e desenvolvimento de vários outros aspectos sociais, culturais e políticos que valorizem a vida e o bem estar das comunidades humanas. Em geral o conceito de desenvolvimento está associado à melhoria da qualidade de vida em qualquer desses aspectos. Entretanto é difícil imaginar que se possa retirar da pobreza grande parte da população sem promover o crescimento econômico. Assim, o crescimento econômico constitui um substrato, uma parcela que viabiliza muitos aspectos do desenvolvimento, principalmente daqueles que exigem um nível mínimo de renda e riqueza para que sejam efetivamente realizados. Muitas áreas da atividade humana, como educação e saúde, exigem vultosos gastos para garantir um nível mínimo de cidadania para os indivíduos de uma comunidade.

A experiência internacional mostra que um dos principais vetores para o desenvolvimento econômico e social tem sido a atuação do Estado. As possibilidades de participação do Estado no crescimento econômico induzido são muito amplas e diversificadas. O Estado pode interferir na atividade econômica para acelerar a acumulação de fatores ou para incentivar a ciência e tecnologia em setores estratégicos. Pode aumentar a produtividade ou, ainda, reduzir os efeitos colaterais negativos resultantes da própria lógica do sistema, como a concentração de renda e a concentração do mercado.

Na educação a presença do Estado vai além do aumento da eficiência do sistema. A educação tem uma dupla inserção no processo de desenvolvimento. A educação é a principal responsável pela formação da cidadania. É principalmente através da educação para a cidadania que os indivíduos tomam consciência de seu papel na sociedade. Que adquirem noções claras de seus direitos e deveres perante a lei. Mais do que isso, tornam-se participantes ativos na elaboração das leis, seja por ações diretas, seja na escolha de seus representantes. Já do ponto de vista econômico, a educação aumenta a eficiência e a produtividade da economia; os processos de produção atuais exigem cada vez mais qualificação e treinamento.

A descrição acima, embora limitada, nos mostra quanto o Estado tem papel importante no crescimento econômico induzido, sendo inevitável que o desenvolvimento econômico e social dependa fortemente de sua atuação. Para tal, aumentar a eficiência do próprio Estado pode ser uma medida essencial; trata-se de introduzir reformas nas instituições existentes de forma que elas cumpram suas finalidades com menores prazos, maior qualidade e menores custos. Alguns dos grandes problemas derivados da relação umbilical entre o crescimento econômico e o Estado é que nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento as instituições públicas são precárias. Devido à insuficiente qualificação da força de trabalho e à baixa intensidade tecnológica dos métodos e processos utilizados, essas instituições, em geral, ficam muito aquém da necessidade. Romper esse círculo vicioso, onde instituições estruturalmente ineficientes devem planejar e dirigir o aumento de sua própria eficiência e, além disso, planejar e dirigir o processo de desenvolvimento econômico de todo o país, não é uma tarefa simples. Entretanto não é impossível, já que muitos países, outrora periféricos, conseguiram nas últimas décadas alcançar o nível de desenvolvimento dos países precursores. Outros estão a caminho, como a China, Índia e Vietnã.

O desenvolvimento induzido e acelerado pelo Estado exige planejamento, coordenação e execução de políticas públicas de longo prazo. No Brasil, a pulverização e baixa representatividade dos partidos políticos, associada à perda de poder do Presidente da República perante o Congresso Nacional, parece ser a principal fonte da crescente instabilidade política verificada nos últimos tempos. É preciso lembrar que a economia, principalmente a economia do desenvolvimento, depende fortemente do contexto político e das instituições que o cercam. Por conta disso é desejável construir alianças políticas baseadas em estruturas de governança mais estáveis, com partidos mais bem estruturados, que possibilitem acordos pró desenvolvimento com maior permanência ao longo do tempo. Se isso é verdade, a reforma política deveria estar entre os primeiros passos dessa longa caminhada (4).

Como disse Tarso Genro em recente artigo:“(...)matar a fome, dar segurança e educação ao povo, para reavivar as dimensões civilizatórias(...)será o seguro histórico da política antifascista bem-sucedida e da revalorização da democracia verdadeira pelo povo exasperado” (5).

Em nosso país, o embate eleitoral que se aproxima é certamente mais uma etapa de uma longa jornada para derrotar os grupos fascistas que estão sempre à espreita. O fascismo como movimento político de massa não é um fenômeno abstrato. Não surge do nada. Os grupos fascistas sempre existiram. Expandem-se quando encontram condições econômicas e sociais deterioradas. Os fascistas sempre souberam tirar proveito da propaganda. Os da atualidade têm utilizado com competência as redes sociais para difundir suas obscuras teorias, suas falsas promessas e sua política de ódio. Mas não nos iludamos. Não é a propaganda em si que os leva ao poder. Bergman em seu filme relembra a lição da História: as más condições de vida da população formam um substrato onde, não poucas vezes, a serpente cria e recria os seus ovos.

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(1) Piketty, Thomas, O Capital no Século XXI, 1ª edição, Editora Intrínseca, Rio de Janeiro, 2011

(2) Jordà, Òscar et al., The Rate of Return on Everything, 1870-2015, The Quarterly Journal of Economics, Universidade de Oxford, agosto de 2019.

(3) Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira, Coordenação de População e Indicadores Sociais, IBGE, Rio de Janeiro, 2020.

(4) Oliveira, Sergio Gonzaga, A Mãe de Todas as Reformas, Rio de Janeiro, novembro de 2021

(5) Genro, Tarso, A Democracia como Forma e Conteúdo,  Rio de Janeiro, abril de 2022
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(*) Sergio Gonzaga de Oliveira é engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e economista pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). É colaborador do blog Democracia e Socialismo, onde tem destacado a importância e desafios para a retomada do desenvolvimento de longo prazo no Brasil.

Publicado originalmente no blog Democracia e Socialismo em junho de 2022

abril 15, 2025

O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO (I)

Sergio Gonzaga de Oliveira (*)

Sigmund Freud, considerado o pai da psicanálise, criou a expressão “o mal-estar na civilização” para refletir sobre o conflito entre os impulsos que nos remetem em direção ao prazer (pulsões na linguagem de Freud) e as restrições que a civilização (cultura) nos impõe para viabilizar a vida em sociedade.Tomando emprestada essa expressão, podemos dizer que o mundo atual vive tempos sombrios, marcados por um profundo mal-estar que certamente se sobrepõe à inquietação descrita por Freud.

As principais evidências desse mal-estar são as recorrentes explosões de fúria popular ocorridas em diversas partes do mundo na última década. Desde a primavera árabe, Irã, Tunísia, Egito, Líbia, Síria, Argélia, Iraque, Líbano e vários outros países da região vem convivendo com conflitos cada vez mais intensos. Na América Latina não tem sido diferente. Manifestações semelhantes foram registradas na Bolívia, Chile, Equador, Venezuela e Colômbia. Os Coletes Amarelos na França, o Brexit na Inglaterra, o Occupy Wall Street nos EUA, a reação contra a construção de um Shopping Center em um parque na Turquia, os separatistas da Catalunha e os rebeldes anti-Pequim em Hong Kong, embora tenham motivações diferentes, são exemplos de uma insatisfação crescente. 

O mais espantoso é que essas explosões populares têm origem às vezes em atos governamentais aparentemente corriqueiros ou burocráticos. Funcionam como uma espécie de rastilho de pólvora que rapidamente provoca uma explosão. Podem ser derivadas de resultados eleitorais contestados, protestos contra aumentos de passagens, combustíveis ou pão, escândalos de corrupção, insatisfação com o governo eleito e, até mesmo, um prosaico feriado nacional em homenagem às forças armadas. Em muitos casos, a simples revogação do ato que gerou as manifestações não acalma a população. Os protestos e a violência prosseguem sem que se perceba a pauta real das reivindicações.

Em muitos países, forças políticas radicais que tradicionalmente tinham pouca ou nenhuma influência no jogo democrático assumem relevância e, não poucas vezes, chegam ao poder pela via eleitoral. Usualmente, se posicionam no processo político apontando culpados, reais ou imaginários, pelas dificuldades sentidas pela maioria da população. Imigrantes, minorias, países estrangeiros e a proteção ao meio ambiente são os principais alvos. Quando têm sucesso, ameaçam as conquistas democráticas e civilizatórias; restringem as liberdades civis, os direitos humanos, a imprensa e a oposição. Apesar de diferenças significativas e características próprias de cada país, podemos incluir os EUA, a Inglaterra, a Turquia, a Rússia, a Hungria, as Filipinas e o Brasil nesse rol. Em outros lugares, sem ter conquistado o poder, esses grupos extremistas vêm crescendo, como na Espanha, Itália, Alemanha, França, Finlândia e vários outros países europeus, numa demonstração inequívoca de que algo mais profundo pode estar em curso.

Muitos, com razão, atribuem às redes sociais (whatsapp, facebook, twiter, instagram, youtube) o poder de amplificar as disputas, convocar os protestos de rua e intensificar a participação de forças políticas radicais nas eleições. Entretanto, por mais que as redes sejam um instrumento moderno e eficiente de aglutinação e debate, elas em si não parecem ser a origem de tanto descontentamento. Muito se tem escrito acerca das causas desse mal estar. Alguns autores, em busca de uma resposta, explicam cada evento como resultante de circunstâncias próprias de cada país ou de cada região. Não que isso não seja adequado e, na maioria das vezes, é bastante convincente.

Entretanto, algumas evidências parecem indicar que pode existir um substrato comum a essa insatisfação recorrente. A hipótese que pretendo analisar em dois artigos é a ocorrência de uma conjunção perversa entre a tendência histórica à concentração de renda, comprovada por pesquisas empíricas recentes, e alguns fenômenos econômicos, políticos, sociais e demográficos que têm dificultado, ou até mesmo impedido, as ações distributivas tradicionalmente realizadas através do Estado. Dentre estes os mais evidentes são a globalização, a perda de poder dos sindicatos, o crescimento explosivo dos custos e dispêndios com saúde e educação e o aumento da vida média da população. No geral, esses fenômenos são derivados da rápida evolução tecnológica que se verificou a partir da segunda metade do século passado, marcadamente do final da década de 1970.

Com relação à concentração de renda, as principais pesquisas se limitaram aos países centrais que possuem base estatística mais consolidada e de melhor qualidade. Nos países periféricos, ainda em desenvolvimento, os dados não permitem avançar com tanta segurança, embora os poucos elementos disponíveis estejam mostrando que o panorama não é diferente.

A mais conhecida é a de Thomas Piketty descrita em seu livro “O Capital no Século XXI” (1). Piketty se baseou em dados históricos obtidos em mais de vinte países, cobrindo um período de três séculos, com metodologia inovadora e maior amplitude do que pesquisas anteriores.  A tese central de Piketty pode ser compreendida por meio de uma relação matemática bastante simples. Explica Piketty textualmente: “A principal força desestabilizadora está relacionada ao fato de que a taxa de rendimento privado do capital (r) pode ser forte e continuamente mais elevada do que a taxa de crescimento da renda e da produção (g). A desigualdade (r>g) faz com que os patrimônios originados no passado se recapitalizem mais rápido do que a progressão da produção e dos salários. Essa desigualdade exprime uma contradição lógica fundamental. O empresário tende inevitavelmente a se transformar em rentista e a dominar cada vez mais aqueles que só possuem sua força de trabalho. Uma vez construído, o capital se reproduz sozinho, mais rápido do que cresce a produção. O passado devora o futuro”.

Em outras palavras, quando os lucros e juros crescem em ritmo mais acelerado que a produção de bens e serviços, os salários necessariamente ficam para trás, já que a soma dos rendimentos do capital com a remuneração do trabalho corresponde significativamente à totalidade do produto e da renda gerada em uma economia (Identidade das Contas Nacionais). As pesquisas mostraram à Piketty que a taxa média histórica de rendimento do capital tem se situado em torno de 4 a 5% ao ano. Indicaram, ainda, que no período de um século, entre 1913 e 2012, a taxa média de crescimento do PIB mundial foi visivelmente menor, girando em torno de 3% ao ano.

Prossegue Piketty: “Sob essas condições, é quase inevitável que a fortuna herdada supere a riqueza constituída durante uma vida de trabalho e que a concentração do capital atinja níveis muito altos, potencialmente incompatíveis com os valores meritocráticos e os princípios de justiça social que estão na base de nossas sociedades democráticas modernas”.

Mas Piketty não está sozinho. Òscar Jordà, professor e pesquisador da Universidade da Califórnia em Davis, conduziu, juntamente com outros acadêmicos, mais uma pesquisa no mesmo sentido. Os resultados foram publicados na edição de agosto de 2019 do conceituado The Quarterly Journal of Economics da Universidade de Oxford (2). Os dados foram obtidos nas 16 economias mais avançadas do mundo e com muito mais detalhes e profundidade que o alcançado por Piketty. Entretanto, as conclusões não foram diferentes. O professor Jordà constatou no longo período analisado uma diferença ainda mais significativa entre a taxa média de retorno do capital (r) e a taxa média de crescimento dessas economias (g), confirmando a tendência histórica de concentração da renda.

Escreve Òscar Jordà em seu artigo: “Nossos dados mostram que a tendência de longo prazo da taxa real de retorno da riqueza tem sido consistentemente muito mais alta que a taxa real de crescimento do PIB. Nos últimos 150 anos, a taxa real de retorno da riqueza excedeu substancialmente a taxa real de crescimento do PIB em 13 décadas e foi menor que o crescimento do PIB em somente duas décadas, correspondendo às duas guerras mundiais. Isto é, em tempo de paz, (r) sempre excede (g). A diferença entre (r) e (g) tem sido persistentemente alta. Desde 1870, a média ponderada do retorno da riqueza (r) tem sido cerca de 6%, comparada a uma média ponderada da taxa de crescimento real do PIB (g) de 3%, com uma diferença média (r-g) de três pontos percentuais, a qual tem a mesma magnitude do crescimento real do PIB. Em tempos de paz a diferença entre (r) e (g) é ainda maior, girando em torno de 3,8 pontos percentuais.” Prossegue Òscar Jordà: “Uma conclusão robusta desse trabalho é que (r) é muito maior que (g). Globalmente e através da maioria dos países a taxa ponderada do retorno do capital foi duas ou mais vezes maior que a taxa de crescimento nos últimos 150 anos.”

Além das tendências de longo prazo, esses pesquisadores constataram que no período das Grandes Guerras ocorreu uma significativa melhoria da distribuição da renda nesses países. Muito provavelmente, essa melhoria se deve a intensa queima de capital ocorrida nas duas guerras mundiais. Verificou-se também que do pós-guerra até a passagem dos anos 70 para os 80 do século passado essa redução na concentração de renda ficou estabilizada em níveis considerados bastante satisfatórios. Esse período ficou conhecido como “Os Trinta Gloriosos” e algumas escolas do pensamento econômico o tomaram como um padrão histórico permanente. Avaliaram que se as forças de mercado fossem deixadas livres seriam capazes de gerar uma sociedade com uma distribuição de renda mais justa. Entretanto, nem todos concordaram. Muitas explicações para “Os Trinta Gloriosos” descrevem uma combinação única do desenvolvimento econômico gerado pela reconstrução da Europa e do Japão, com a ascensão dos sindicatos, partidos trabalhistas e social-democratas que nesse período tiveram condições de forçar a distribuição da renda via legislação e ações sindicais. As atuais pesquisas indicam que esta última interpretação pode estar mais próxima da realidade. Os “anos dourados” não duraram muito. A partir do final dos anos 70 e início dos 80 a concentração voltou a se afirmar como tendência dominante.

Piketty descreve essa retomada: “Desde a década de 1970, a desigualdade voltou a aumentar nos países ricos, principalmente nos Estados Unidos, onde a concentração de renda na primeira década do século XXI voltou a atingir – e até excedeu – o nível recorde visto nos anos 1910-1920”.

As constatações de Piketty, confirmadas pelas recentes pesquisas de Òscar Jordà, indicam que lucros, juros, aluguéis e outros rendimentos similares superam no longo prazo o crescimento da economia, aumentando a cada dia a diferença de renda entre a elite rica, proprietária de capital, e a maioria dos que vivem de seus salários. Em outras palavras, a economia de mercado é essencialmente concentradora. Ao que tudo indica, uma alteração desse paradigma só pode ser obtida em um período de forte crescimento da economia ou por ações externas ao processo econômico em si.

Piketty esclarece: “A história da distribuição da riqueza jamais deixou de ser profundamente política, o que impede sua restrição aos mecanismos puramente econômicos. A historia da desigualdade é moldada pela forma como os atores políticos, sociais e econômicos enxergam o que é justo e o que não é, assim como pela influência relativa de cada um desses atores e pelas escolhas coletivas que disso decorrem. Ou seja, ela é fruto da combinação, do jogo de forças, de todos os atores envolvidos”.

Entretanto a intervenção da sociedade na economia, seja para promover o desenvolvimento, seja para forçar a distribuição da renda, tem se tornado cada vez mais difícil. Alguns fenômenos recentes, derivados da evolução tecnológica, têm reduzido ou até impedido as ações distributivas conduzidas através do Estado. Entretanto, para não alongar muito este primeiro texto, transfiro para um próximo artigo o exame desses fenômenos e suas conexões com a concentração de renda. Analisarei sucessivamente a globalização, a perda de poder dos sindicatos, o crescimento dos custos e dispêndios com saúde e educação e o aumento da vida média da população.

(1) Piketty, Thomas, O Capital no Século XXI, 1ª edição, Editora Intrínseca, Rio de Janeiro, 2014

(2) Jordà, Òscar et al., The Rate of Return on Everything, 1870-2015,  The Quarterly Journal of Economics, Universidade de Oxford, agosto de 2019.

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 (*) Sergio Gonzaga de Oliveira é engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e economista pela Universidade do Sul de Santa Catarina(UNISUL). Publicou recentemente no blog Democracia e Socialismo uma série de três artigos sobre a retomada do desenvolvimento de longo prazo no Brasil.

Publicado originalmente no blog Democracia e Socialismo em janeiro de 2020

BRASIL SEM PLANEJAMENTO E UM FUTURO JÁ PRESENTE

O artigo do Alfredo contém um conjunto de conceitos e ideias que me parecem muito pertinentes. As principais são:

  • Resgatar o ineditismo da Constituição de 1988 na introdução do planejamento estatal como base para o desenvolvimento nacional.
  • Mostrar como essa orientação constitucional foi solenemente ignorada desde então, reduzindo o planejamento à mera elaboração orçamentária anual ou, quando muito, a uma relação de obras quinquenal.
  • Indicar que a chegada do ultra liberalismo ao poder, nos dias atuais, radicalizou essa tendência, concedendo ao mercado toda a responsabilidade pela dinâmica do desenvolvimento, em franca discordância com as experiências históricas dos países que se desenvolveram.
  • Lembrar que a divisão internacional do trabalho, gerada após a Revolução Industrial e ascensão dos países centrais, permanece mantendo em inferioridade tecnológica e produtiva aquelas periferias que não se movimentam politicamente.
  • Questionar sobre a possibilidade de, no quadro político atual, derivar uma reversão em direção ao ordenamento constitucional de 1988.
  • Insistir na necessidade dessa reversão para que o Estado assuma essa incumbência como base para o desenvolvimento.
  • E, por fim, detalhar a articulação orgânica entre os Órgãos de Estatísticas, o Escritório de Planejamento, o Legislativo, os Agentes Econômicos e a Sociedade para que o processo de planejamento seja eficiente, transparente e democrático.

Sérgio Gonzaga de Oliveira (*)

Segue o artigo de Alfredo.

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BRASIL SEM PLANEJAMENTO E UM FUTURO JÁ PRESENTE

Alfredo Maciel da Silveira (**)

Neste artigo sustento que a retomada do Planejamento no Brasil poderá ser um imperativo, a depender das decisões cruciais que os brasileiros tem diante de si.

Entendo estarmos atravessando um período de reformismo liberal, que não se resume ao tempo do atual governo, e que agrega as esperanças liberais - hegemônicas na ideologia e na política - em um Brasil "desenvolvido" ao modo do liberalismo. 

Mas diante do Brasil real, tal liberalismo poderia dar conta do que promete? E diante da crise social que se agrava, quais a chances de ruptura com esse projeto estratégico liberal? Um novo caminho econômico-social e democrático, mas em qual direção? 

 Ambientação Organizacional do Planejamento

Fonte: elaboração do autor 

Antecedentes. O Artigo 174 da Constituição: o que se pensava em 1988 sobre o planejamento? O que restou?

O planejamento abrangente e integrado das atividades econômicas dos setores público e privado no Brasil foi alçado a princípio constitucional desde 1988, primeira vez na história em que foi mencionado nas constituições brasileiras. Através do artigo 174 e seu parágrafo 1º, está organicamente inserido no "Capítulo I, Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica", que por sua vez abre o "Título VII, Da Ordem Econômica e Financeira".

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.§1º a lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento. 

Tal dispositivo ainda permanece na Constituição sem jamais ter sido regulamentado.

Mas o artigo 174 e seu parágrafo 1º não entraram na Constituição por acaso. À época ainda havia a expectativa de retomada do planejamento sob relações Estado - Sociedade de inspiração socialdemocrata. Uma primeira redação desse dispositivo já constava do anteprojeto constitucional da "Comissão Afonso Arinos", de 1987, com idêntico conteúdo. Já então se fazia também a conexão com as atribuições do Poder Legislativo, quanto a dispor, "com a sanção do Presidente da República", sobre "planos e programas nacionais e regionais de desenvolvimento". É flagrante que a Comissão de Sistematização da Assembleia Constituinte considerou e aprimorou aquela proposta inicial. Sua organicidade e consistência ficaram evidenciadas pelas conexões estabelecidas com as atribuições do Congresso Nacional e do trabalho de suas comissões (respectivamente os artigos 48 e 58 da Constituição), onde se destaca a participação do Poder Legislativo no processo decisório do planejamento.

Ora, sabe-se o que veio depois, com a radical liquidação do Estado desenvolvimentista e a mudança de rumos das relações Estado - Sociedade e Estado-Mercado desde o governo Collor, relações que não seguem à letra o contemplado originalmente na Constituição de 1988, já de resto sucessivamente emendada.

O pouco que se fez no Brasil desde então, sob a denominação de "Plano”, esteve regido pelo artigo 165, alusivo aos orçamentos, onde consta o “Plano Plurianual” que apesar do nome nada mais é que um orçamento para cinco anos,  de  âmbito muito mais restrito portanto, integrante de outro Título, de número VI, "Da Tributação e do Orçamento", em seu "Capítulo II, Das Finanças Públicas". Assim, conceitual e metodologicamente nada tinha a ver com o desenvolvimento institucional da concertação entre governo e setor privado, com a interação estratégica entre players relevantes, ou ainda com a produção de informações socioeconômicas consistentes entre si como base da negociação política, elementos essenciais de um planejamento indicativo contemporâneo.

Situação presente. Reformismo liberal e crise social.

Henrique Meirelles, cujas crenças são muito próximas às de Paulo Guedes, quando então ministro de Temer preparou o terreno do que se assiste agora na política econômica e na crise social que se avizinha. Mas havia uma grande diferença. O objetivo era permitir a Temer postular a reeleição. E para isso teria bastado, na visão deles, uma recuperação tímida da economia, crescendo uns 2%  em 2018, que sinalizasse o afastamento da recessão, e tendo sido aprovada também a Reforma da Previdência.

A médio prazo, preparava-se o pacote da infra-estrutura, agora herdado pelo atual governo, a ser oferecido ao capital privado. Isso puxaria o investimento e taxas um pouco mais elevadas do PIB a partir de 2019; mas deu tudo errado para Temer na política, pelos motivos que se sabe. Em comum com o Guedes a crença de que, ressalvados os freios ortodoxos das políticas monetária e fiscal, o "mercado" determina a taxa de crescimento e tudo o mais: se a indústria vai sobreviver à competição, se o país vai se especializar na exportação de commodities, se a pobreza será erradicada em dez, cinquenta anos, ou nunca, se as desigualdades serão "mitigadas" ou não, etc. O Guedes apenas radicalizou esta crença, com o agravante de extrapolar uma tendência para quatro anos, apregoando uma taxa de crescimento média de 2% aa.

O novo e o de sempre. Capitalismo global e heterogeneidade estrutural.

Há um "fetichismo" generalizado, nas nossas elites e nas nossas camadas sociais médias de renda mais alta, de que seu modo de vida, seus padrões de consumo aculturados aos das sociedades capitalistas centrais, devem seguir sendo a referência do progresso, da modernização, do que seria o “desenvolvimento” socioeconômico. Desnecessário apontar o papel da disseminação ideológica dessas "verdades", dessas "evidências", fundadas nos “argumentos de autoridade” de intelectuais orgânicos assentes na academia e nas consultorias.

De fato, as mudanças estruturais em curso na economia mundial aprofundam mais e mais a histórica integração de subsistemas econômicos modernizados periféricos aos centros dinâmicos do capitalismo global, de onde emanam as decisões econômicas estratégicas, determinantes por sua vez das relações de poder que fazem reiterar, reproduzir, aquele "fetichismo". Em contrapartida àquele subsistema periférico moderno e "desenvolvido", aprofunda-se a heterogeneidade estrutural. Por exemplo, muito da fundamentada constatação quanto à falta de competitividade da indústria brasileira reflete justamente os novos diferenciais de produtividade causados pela fronteira da “quarta revolução industrial” ou “indústria 4.0” por onde a “antiga” heterogeneidade agora se metamorfoseia.(O conceito de "heterogeneidade estrutural" foi originariamente proposto pelo economista  chileno Anibal Pinto, desde 1970,  para dar conta, em poucas palavras, dos desníveis de produtividade entre os subsistemas econômicos modernos e os tradicionais dos países periféricos do capitalismo, bem como da nula ou mínima  irradiação dos ganhos econômicos gerados nos primeiros para os segundos subsistemas, internos àqueles países– ver também Nota 1 ao final).

Ao mesmo tempo persistem: a economia "paralela" de "baixa produtividade", a economia “informal” (que agora se “formaliza” mediante truques legislativos), a indústria das construções irregulares, os serviços dos “empreendedores” pobres, dos sem emprego, o comércio dos “camelódromos”, do caos urbano, das crianças nos sinais de trânsito, subsistemas já de há muito descritos figurativamente como o lado atávico e caricatural das "Belíndias" e "Ornitorrincos"1.

Crescimento acelerado e ação estrutural? Planejamento ou reformismo liberal? 

Diante da atual hegemonia política e ideológica do liberalismo, cabe perguntar: até onde o aprofundamento de uma crise social poderia desapontar as esperanças do reformismo liberal ora em curso, levando a uma mudança de rumos? Ou, ao contrário, poderia reforçar a crença na necessidade de "mais-do-mesmo", de “fuga-para-a-frente” com a liquidação do que ainda resta dos instrumentos de atuação direta e indireta do Estado na economia conforme o ordenamento constitucional de 1988?

Lideranças democráticas gravitando ao centro do espectro político, mais à direita ou mais à esquerda, postulam um protagonismo em meio à crise social já manifesta. Elas representam respectivamente, ou a continuidade do projeto estratégico liberal em curso ou a sua ruptura.

Eis o ambiente no qual está inserida a possível negociação e construção política de um Projeto Nacional de Desenvolvimento e a recuperação de seu elo perdido, o planejamento. Tais são os contextos socioeconômico, político e internacional sob os quais as opções estratégicas sobre o nosso futuro já estão neste momento sendo jogadas, podendo desse modo o planejamento vir a ser um imperativo, a depender das escolhas que o povo brasileiro tem diante de si.

A propósito, numa série de três artigos de Sérgio Gonzaga de Oliveira recentemente publicados neste Blog, e especialmente como está dito logo ao início de “Urgente – A retomada do desenvolvimento III”, perpassam as teses da necessidade de um Projeto Nacional de Desenvolvimento, de suas condicionantes políticas e da recuperação da função Planejamento que lhe é associada.

Sabidamente o “PIB” não é indicador de bem estar social. Portanto, falar em crescimento da economia, e mesmo do seu “desenvolvimento”, por si só nada implica quanto à qualidade social do mesmo. No entanto, mesmo um liberalismo “mitigado”, “educado”, sensível a priorizar “políticas sociais” em áreas tais como saúde, educação, proteção social e também em segurança, fica de mãos atadas na questão da fonte primária do financiamento dos respectivos gastos públicos que é o próprio PIB, e cujo crescimento a taxas maiores ou menores fica entregue aos desígnios sagrados do “mercado”.

Certo é que o neoliberalismo de hoje dobra as apostas conservadoras do passado.

Isso vem desde as teorias “etapistas” do desenvolvimento econômico (anos 60), quando muitos acreditavam que as economias subdesenvolvidas percorreriam o caminho já trilhado pelas desenvolvidas. Bem depois, por volta de 1974, nos tempos do regime militar e sua “teoria do bolo” – “primeiro crescer para depois distribuir” - Roberto Campos comentara ter sido então superada, segundo ele, o que teria sido a controvérsia anterior a 1964 entre "distributivismo" versus "produtivismo", pela opção "produtivista" do regime militar como premissa para a construção de instituições de política social, salarial, educacional, de seguridade, etc.

Finalmente já no presente século, voltaram as esperanças - e aqui não só de neoliberais diga-se, mas de muitos insuspeitos “progressistas” -  quanto à “integração do mercado de trabalho”, ao crescimento real dos salários, ao “círculo virtuoso” entre “consumo de massa” e investimento industrial, apostando-se então na superação do subdesenvolvimento mediante, conservadoramente, o investimento em educação, transferências de renda aos grupos sociais fragilizados (Bolsa Família), consumo de milhões de smartphones e  de “espaçosas” TVs de tela plana nas apertadas e precárias moradias populares...

Ora, o imenso passivo social característico do Brasil requer simultaneamente um crescimento econômico acelerado sustentado e ações estruturais, dos lados tanto da oferta quanto da demanda, com efeitos redistributivos não só na renda mas principalmente quanto ao acesso a bens públicos e à acumulação de bens produtivos (aqui tome-se por referência a pesquisa e obra coletiva  de Hollis Chenery, Montek S. Ahluwalia e outros, através do Banco Mundial  e da Universidade de Sussex, publicada sob o título “Redistribution With Growth”, 1974) das populações excluídas daquele subsistema econômico moderno acoplado ao capitalismo global. Trata-se portanto de enfrentar o passivo histórico legado por um sistema econômico perverso, reiteradamente gerador de heterogeneidade estrutural, que não reduz os diferenciais de produtividade entre subsistemas econômicos segmentados ou fracamente integrados, nem difunde para o conjunto da população as conquistas do progresso técnico usufruídas pelas camadas sociais privilegiadas (tal diagnóstico perpassa toda a obra do economista brasileiro Celso Furtado, considerado não só um dos maiores pensadores do Brasil mas um dos grandes quadros da República – aqui a destacar, seu livro “O Mito do Desenvolvimento Econômico, 1974).

Tanto o crescimento acelerado e a ação estrutural de oferta e demanda são perfeitamente exeqüíveis em economias de mercado mediante a liderança do Estado em coordenação com o setor privado sob a modalidade de política econômica e social sintetizada no conceito metodológico de planejamento indicativo.

Bom que se diga, apenas em teoria se pode falar de planejamento indicativo “puro”, porquanto em todas a situações práticas ele é “(mais que) indicativo”, dado o arsenal de instrumentos do Estado a induzirem, seja o alinhamento de grupos privados aos objetivos e metas da sociedade representadas no Estado, seja a criarem uma situação de “jogo cooperativo” entre  outros tantos grupos privados e o Estado, seja finalmente - e mais importante – a habilitarem metodologicamente o Estado como um “player”, que de fato o é, em seu jogo aberto, em sua interação estratégica, com poderosos interesses econômicos e geopolíticos em virtual situação de conflito. Diga-se também, que o Brasil reúne características de extensão territorial, recursos naturais e dimensões econômica e demográfica que lhe conferem potencialmente um alto grau de autonomia decisória numa economia mundial integrada e globalizada.

Informações, negociação e concertação

A produção de consistência das informações socioeconômicas é insumo básico, que está no início do aprimoramento contínuo institucional do planejamento. E a revolução informacional em curso, que impacta a cultura e a vida quotidiana, facilita em muito a participação da cidadania. Trata-se de toda uma ambientação organizacional a ser desenvolvida pari passu ao suporte instrumental e técnico dessa abordagem da política econômica e social.

O caput e o parágrafo 1° do Artigo 174 da Constituição, delineiam de forma irretocável os princípios estruturantes de uma modelagem das políticas econômica e social em direção ao desenvolvimento institucional.

O primeiro passo é a simples produção de informações socioeconômicas articuladas e internamente consistentes (para o que o país dispõe do IBGE, IPEA e de toda uma extensa rede de pesquisa abrangendo a sociedade civil – ver Figura ilustrativa) propiciando a explicitação de custos, trade-offs (p.ex. perdas e ganhos equivalentes entre grupos sociais ou entre presente e futuro) e benefícios das estratégias, o que por si só elevaria a qualidade da negociação política. Informação é a matéria prima da negociação e do planejamento em economias de mercado.2

Note-se que esse decisivo passo inicial é do inteiro controle do poder executivo e em nada conflita - muito ao contrário - com a condução quotidiana do conjunto das políticas econômica e social.

Mas este suporte informativo deve, contudo manter-se em conexão ao processo decisório em escala social e inserir-se no ambiente organizacional próprio deste processo. As dimensões, técnica, e político-institucional do planejamento então conjugam-se, exigindo um mútuo desenvolvimento, em aprimoramento contínuo. Na sua falta, o debate das políticas e reformas não sai da perspectiva setorialista e parcial.

Por sua vez a criação de um "clima", de um ambiente institucional e macroeconômico adequado à confiança do setor privado, mormente para a indústria, é absolutamente crucial também no contexto do planejamento. Para o setor privado o planejamento não é impositivo obviamente, mas convida à concertação e ao alinhamento de expectativas. Nisso reside sua força. Aquela concertação é o "coração" da sua metodologia. Abrange um todo, setores público e privado. Não é só investimento público, não é uma lista de obras, nem a superposição de neoliberalismo, voluntarismo e dirigismo sem plano.

Ambientação Organizacional – uma proposta.

Por fim, brevemente para concluir, alguns aspectos da dimensão institucional e organizacional. Os passos podem ser visualizados na Figura ilustrativa.

Apoiada nas projeções e simulações preliminares do Escritório de Planejamento e do Órgão de Estatística, a autoridade central define "Grandes Opções" e "Objetivos" que são submetidos ao Parlamento para aprovação (por analogia ao que representa para o Orçamento a LDO - Lei de Diretrizes Orçamentárias). De volta à área do poder executivo, estes objetivos e opções serão convertidos no plano propriamente dito. Nesta fase é muito importante a definição da relação objetivos - instrumentos. Aqui, o Escritório de Planejamento se apoia parcialmente em modelos de simulação, cuja estrutura modelística enfatiza as limitações impostas pelo conjunto de instrumentos de fato disponíveis, bem como pelo comportamento de agentes fora do controle governamental, e pelas instituições em geral. O modelo gera resultados formais, que deverão ser criticados e complementados com base no conhecimento intuitivo, experiência e juízos práticos. Isto significa que nem todas as possibilidades e restrições deverão estar representadas no modelo. Neste sentido, o modelo deverá ser complexo até o ponto em que produza resultados corretos e confiáveis. O modelo deverá ser conectado à base de dados do Órgão Estatístico (IBGE). Este órgão também operará modelos mais próximos a uma extensa base de dados, com menor ênfase nas restrições impostas pelo elenco de instrumentos, e com maior flexibilidade para explorar resultados fisicamente possíveis, num horizonte de longo prazo, que inclui a consideração de um módulo demográfico que contemple, além das variáveis demográficas, a interação destas com o sistema educacional, as condições de oferta e demanda do mercado de trabalho, e a evolução das condições de vida de grupos sociais.

Uma vez elaborado o Plano, ele deverá ser debatido e aprovado pelo Parlamento. Aqui se culmina um processo que se desenvolve em paralelo à elaboração do Plano, a saber, o processo de negociação política dentro da sociedade, entre os diversos grupos sociais e agentes econômicos. Mormente numa situação em que os perfis da renda e da riqueza são concentrados, a informação explicitada no Plano, tornando transparentes os trade-offs, particularmente aqueles alusivos a perdas e ganhos dos diversos grupos sociais, vem a ser uma peça fundamental na formação e estabelecimento de compromissos em torno da trajetória ou padrão de desenvolvimento a ser perseguido. O papel da informação no aperfeiçoamento democrático é, portanto, essencial.

Durante o processo até aqui descrito, o Conselho de Planejamento, formado por representantes de instituições sociais, especialistas e personalidades de notório saber e independência, assessora o governo e o parlamento em caráter consultivo.

Durante a implementação, o Escritório de Planejamento ajustará as relações objetivos-instrumentos por meios formalizados e não formalizados, conforme mencionado acima, com base na informação nova que for adquirida durante a implementação. 

Notas

[1] “Belíndia” foi a imagem do Brasil cunhada desde o ano de 1974 pelo economista brasileiro Edmar Bacha em sua fábula de um país fictício que justapunha a pequena “Bélgica” desenvolvida, com a imensa e populosa “Índia” subdesenvolvida. Já “O Ornitorrinco” foi título de relevante artigo de 2003, do sociólogo brasileiro Chico de Oliveira, recentemente falecido. Tratava-se para ele de representar o Brasil como uma “(...) sociedade e economia em seus impasses e combinações esdrúxulas (...) que só podiam ser um ornitorrinco”. A destacar o reconhecimento por Chico de Oliveira, em nota ao final de seu trabalho, quanto à contribuição do economista chileno Anibal Pinto “(...)em acentuar a heterogeneidade estrutural como marca específica do subdesenvolvimento”. (ver também PINTO, Anibal. Heterogeneidade estrutural e modelo de desenvolvimento recente. In: SERRA, José coord. América Latina – Ensaios de interpretação econômica. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979). Conclui Chico: “(...) Retomando sua contribuição, talvez se possa dizer que o ornitorrinco é uma exacerbação da heterogeneidade estrutural”. 

[2] A contribuição  aqui provem principalmente de Isaac Kerstenetzky com seu seminal artigo  “O Planejamento Econômico e Social em Economias de Mercado: Informações e Compromissos” -  Debate Econômico, Belo Horizonte: Ed. Fundação João Pinheiro, p. 17-25, dezembro 1986; acredito (apenas uma conjectura) possa ter este trabalho do Dr. Isaac  subsidiado as formulações sobre o Planejameno Indicativo no projeto de constituição da “Comissão Afonso Arinos”, e na própria redação do atual Art. 174 da Constituição, conforme o mencionado ao início do presente artigo.

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(*) Sérgio Gonzaga de Oliveira é engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e economista pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Recentemente abriu o debate aqui no Blog sobre a retomada do desenvolvimento econômico mediante três artigos concatenados.

(**) Alfredo Maciel da Silveira é engenheiro (UFRJ), MSc. Eng. de Produção (COPPE/UFRJ) e Doutor em Economia (IE/UFRJ). É um dos editores deste Blog “Democracia e Socialismo”.

Publicado originalmente no blog Democracia e Socialismo em julho de 2019

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