Sérgio Gonzaga de Oliveira (*)
No segundo artigo dessa série, postado em maio próximo passado, publiquei um diagnóstico tentando entender a estagnação da economia brasileira nos últimos 40 anos. Analisei sucessivamente as variáveis que têm potencial para explicar a dinâmica da economia capitalista no longo prazo: a acumulação de capital, a formação dos mercados, a dinâmica populacional e a produtividade. A principal conclusão dessa investigação é que existem limitações estruturais graves no sistema produtivo brasileiro que impedem a continuidade de nosso desenvolvimento. Como essas variáveis são interdependes, em determinados cenários, algumas delas travam o crescimento das outras e o conjunto fica estacionado. Forma-se uma espécie de círculo vicioso. No máximo ocorre o que os economistas chamam de “vôo da galinha”. São pequenos períodos de expansão seguidos de recessão, mas no longo prazo e na média, o crescimento é próximo de zero. A grande incógnita dos dias atuais é como romper com essa estagnação.
Os caminhos disponíveis não são muitos. A retomada do desenvolvimento de longo prazo precisa cumprir algumas etapas iniciais antes de começar a se tornar realidade. A primeira delas, e provavelmente a mais importante, é a estruturação de um pacto político pelo desenvolvimento. A construção desse pacto deve dar origem a um conjunto de ações estratégicas que permita o alinhamento dos agentes econômicos, do Estado e da opinião pública com o mesmo objetivo: eliminar as deficiências estruturais que nos paralisam. Em seguida é necessária a implantação de uma estrutura de planejamento focada nesses objetivos e disseminada em todos os órgãos do Estado envolvidos com a retomada. Essa estrutura de planejamento deverá definir as ações que serão conduzidas pelo Estado, pela iniciativa privada ou em parcerias público privadas.
A história econômica tem mostrado que o desenvolvimento acelerado resulta de uma severa intervenção da sociedade no rumo dos acontecimentos. É uma combinação da implantação de ações estratégicas de longo prazo com o sequenciamento de políticas econômicas adequadas para cada momento da conjuntura. Essas políticas de conjuntura devem tentar amortecer as flutuações que caracterizam o capitalismo, recuperar e manter a capacidade de investimento do Estado e absorver os choques internos e externos que tumultuam a economia. Não é uma tarefa fácil, mas, dependendo das escolhas, podem ajudar muito o desenvolvimento de longo prazo.
Como já ressaltado no artigo anterior, a recuperação da capacidade de investimento do Estado depende da redução de suas despesas correntes e, principalmente, da retomada do crescimento, que promova o aumento da receita pública. Se o processo for bem conduzido, forma-se um círculo virtuoso que acelera o desenvolvimento.
Os modelos de desenvolvimento
De forma bastante simplificada pode-se dizer que, desde a redemocratização até nossos dias, os economistas se dividem em duas correntes principais quando propõem a retomada do desenvolvimento: os que advogam a chamada “integração competitiva” e os denominados “desenvolvimentistas”. Os primeiros se caracterizam pela defesa de uma completa abertura no comércio exterior. Segundo esses, a abertura comercial leva a um aumento da produtividade na indústria de transformação e, em tese, as que sobrevivem ao embate com os produtores internacionais são beneficiadas pelos ventos modernizadores da competição, em um processo similar à “destruição criativa” de Schumpeter. Alegam também os defensores desse modelo que a modernização forçada pela abertura comercial irá se espraiar para outros setores da economia. Além disso, propõem uma completa desregulamentação, reduzindo a intervenção do Estado, na suposição de que a dinâmica da economia de mercado, associada à liberação comercial, será capaz de retomar e acelerar o crescimento econômico.
Os “desenvolvimentistas”, com algumas variações, se distinguem por uma política industrial ativa, onde o Estado escolhe setores estratégicos e por meio de subsídios, incentivos e proteções promove seu desenvolvimento. Os defensores desse modelo alegam que se os setores forem bem escolhidos haverá uma espécie de “arrastamento” em relação ao restante da economia. O “desenvolvimentismo” se caracteriza também pela adoção mais ou menos generalizada de barreiras e proteções contra a concorrência internacional. Além disso, propõem uma atitude ativa do Estado, intervindo em vários setores, inclusive com investimentos diretos ou empréstimos significativos.
Entretanto, a adoção de qualquer desses modelos, no Brasil atual, esbarra nas deficiências estruturais do sistema produtivo. E uma das mais importantes é a reduzida produtividade básica da economia. Como já foi analisada no artigo anterior, a produtividade básica é construída fora dos portões das fábricas e está relacionada a quatro áreas principais: (1) a existência de um ativo sistema nacional de tecnologia, (2) a amplitude da infraestrutura física (energia, transporte e comunicações), (3) a qualidade da infraestrutura social (educação, saúde, habitação, saneamento e mobilidade urbana) e (4) a eficiência do Estado. Não é preciso argumentar muito, nem lançar mão de exaustivos dados estatísticos, para se constatar que o Brasil está seriamente defasado em sua produtividade básica. Durante o ciclo de substituição de importações essas áreas deveriam ter se desenvolvido em conjunto com o crescimento econômico mas por diversas razões ficaram para trás. A oitava economia do mundo emergiu para a democracia com um atraso lamentável em pontos vitais para a continuidade do desenvolvimento. Uma das razões mais prováveis para o atraso foi o impacto desorganizador da explosão demográfica e da migração campo-cidade ocorrido durante todo esse período. Mas não foi só isso. Erros de estratégia foram cometidos e seus efeitos danosos são observados até hoje. Um exemplo bem conhecido é a radical opção rodoviária dos anos JK e seguintes. As ferrovias, cabotagem e transporte urbano sobre trilhos foram liquidadas. A educação é outro exemplo dramático. Sucessivos governos, com raras exceções, relegaram a educação a um segundo plano. Nos dois casos, como em vários outros, trilhamos um caminho completamente diferente da maioria dos países que se desenvolveram.
Diretrizes estratégicas de longo prazo
É necessário então que o aumento da produtividade básica da economia se transforme em uma importante diretriz estratégica e que resulte em ações de longo prazo para eliminar esses pontos de estrangulamento. Deve-se observar que, em quase todos os itens relacionados, a participação do capital privado é necessária e, na maior parte das vezes, essencial. Até porque os recursos financeiros do Estado serão sempre escassos. Vale a pena destacar também a importância da eficiência do Estado para os objetivos pretendidos. Um Estado ineficiente é o mesmo que nada.
De qualquer forma, a herança da produtividade básica muito baixa dificulta a escolha de qualquer modelo de desenvolvimento do tipo “integração competitiva” ou “desenvolvimentismo”. A adoção da “integração competitiva” poderia aniquilar completamente a indústria de transformação atual antes que a modernização pela competição tivesse qualquer efeito. Principalmente em confronto com produtores internacionais que têm em seus países produtividade básica muito mais elevada ou vantagens competitivas difíceis de superar no curto prazo. Quanto ao “desenvolvimentismo”, a reduzida produtividade básica nos condenaria a proteger eternamente o parque produtor. É muito oneroso para o Estado desenvolver qualquer setor, por mais promissor que seja, quando a produtividade da economia trabalha em sentido contrário. O debate em torno da adoção de qualquer desses modelos, ou de suas variantes, deveria ser precedido de um longo esforço nacional de planejamento e execução de ações que elevem a produtividade básica a um nível compatível com os nossos competidores internacionais.
Ainda assim, a competição internacional não é um assunto trivial. Em geral, os países desenvolvidos e muitos emergentes defendem a abertura dos mercados para setores em que seus produtos são mais competitivos e fecham suas fronteiras onde têm menor produtividade. Por essa razão, enquanto o esforço de elevação da produtividade estiver em andamento é conveniente tomar algumas medidas acauteladoras. A principal delas é proteger da melhor forma possível a indústria de transformação que sofre com a concorrência internacional, especialmente com condições internas muito desfavoráveis. Além disso, vale a pena promover o desenvolvimento de alguns setores que agem transversalmente, aumentando a produtividade de todos os outros. Entre esses estão as áreas de digitalização, integração de sistemas, automação e inteligência artificial.
Infelizmente, a fraca produtividade básica não é nosso único grande problema. Duas outras deficiências estruturais já discutidas no artigo anterior travam o desenvolvimento. Como requerem ações de longo prazo para sua superação, devem ser incluídas nas diretrizes estratégicas. A primeira é a péssima distribuição de renda. O Brasil encerrou o ciclo de substituição de importações com um mercado de consumo interno muito reduzido em relação ao número de seus habitantes. A maior parte da população não participa desse mercado, em grande medida devido à má distribuição da renda. Muitas das instituições e políticas públicas atuais deverão ser modificadas e outras implementadas com o objetivo de incorporar as populações marginalizadas ao sistema produtivo. O principal objetivo será a formação de uma extensa classe média que sustente um vigoroso mercado de consumo interno. Esse é o padrão observado nos países desenvolvidos. Não há como ignorar a má distribuição de renda num projeto de desenvolvimento. Não há como chegar ao mundo desenvolvido mantendo a vergonhosa marca de nono país mais desigual do planeta.
A segunda, mas não menos importante, é a preservação do meio ambiente. Na grande maioria dos bens e serviços produzidos pelos humanos a contribuição dos recursos naturais é essencial. A participação desses recursos na produção da riqueza é tão significativa que nas últimas décadas a possibilidade de esgotamento ou degradação de suas fontes e do ambiente natural tem se tornado uma perspectiva sombria para a humanidade. A preservação do meio ambiente e a utilização racional dos recursos naturais tornaram-se pontos vitais da agenda política de todos os países, inclusive dos emergentes.
Um pacto político pelo desenvolvimento
Em resumo, a elevação da produtividade básica, a distribuição da renda e a preservação do meio ambiente devem ocupar um lugar de destaque entre as diretrizes estratégicas. Devem resultar em ações coordenadas de longo prazo que modifiquem estruturalmente o sistema produtivo e rompam o círculo vicioso da estagnação de quatro décadas. Como são ações de longo prazo, é indispensável que sejam consolidadas em um pacto político que ultrapasse o período de quatro anos de renovação dos mandatos dos governantes. O ideal é que esse pacto pelo desenvolvimento seja subscrito pela maioria das forças políticas do país e permaneça no programa de atuação de qualquer partido ou coligação que venha a ser eleito para o Governo ou para o Congresso. Seria algo semelhante na forma, porém com conteúdo diferente, ao que ocorreu no Pacto de Moncloa, quando a Espanha organizou a transição para a democracia. Em Madrid, além dos partidos políticos, participaram do pacto as Centrais Sindicais e as Federações de Empresários.
Um projeto de desenvolvimento é essencialmente um projeto nacional. Quando um país cresce passa a ser concorrente direto dos já desenvolvidos e a sofrer restrições de toda ordem. Certamente, enfrentará dificuldades externas nos campos da economia, da tecnologia, da geopolítica e da cultura. Terá que abrir espaço, com habilidade, nas áreas comercial e diplomática e reforçar seus sistemas de defesa e segurança. Por essa razão, um pacto político pelo desenvolvimento, que consolide a unidade nacional, é essencial. Nesse sentido a polarização e fragmentação que caracterizam a política brasileira nas últimas décadas são extremamente danosas. São o cenário ideal para a continuidade da paralisação e estagnação.
Entretanto, apesar da importância da economia, o desenvolvimento não é só isso. Outras diretrizes visando o aperfeiçoamento das instituições democráticas, da universalização dos direitos humanos, da consolidação dos direitos civis e da ampliação das liberdades básicas deverão ser consideradas. Quaisquer que sejam as diretrizes estratégicas escolhidas é necessário construí-las em torno de um projeto político que transforme o Brasil em um país desenvolvido, soberano, com justiça social e orgulhoso de seus ambientes naturais preservados.
Quando não existe um projeto de futuro, a política se amesquinha. Transforma-se numa mera luta pelo poder. Tudo perde sentido, o tecido social se esgarça, a ética se esvai. A corrupção, a violência, a ilegalidade e o oportunismo se transformam em métodos de ação política.
A verdade é que não existe solução fácil. Não existe “bala de prata”. O tsunami da explosão populacional, da migração campo-cidade e a herança oligárquico-escravagista do Brasil colônia deixaram suas marcas. Entretanto, não nos deixemos iludir pelas vozes pessimistas que tentam nos condenar ao atraso, insistindo que tudo deriva de nosso “complexo de vira lata”. Não é verdade. Em vários setores somos vencedores. A extração de petróleo em águas profundas, a produção e exportação de commodities, o desenvolvimento e fabricação de aeronaves são exemplos gritantes. Existem muitos outros. Não devemos perder a esperança em um futuro melhor. É perfeitamente possível vencer esse desafio. Certamente um proveitoso ciclo de entendimento político, diretrizes estratégicas bem delineadas, planejamento e investimentos estatais, participação ativa do capital privado e execução cuidadosa tirará o Brasil da situação lamentável em que se encontra.
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(*) Sérgio Gonzaga de Oliveira é engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e economista pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).
Publicado originalmente no blog Democracia e Socialismo em julho de 2019