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abril 18, 2025

A MÃE DE TODAS AS REFORMAS

 Sérgio Gonzaga de Oliveira (*)

Os brasileiros estão perplexos e sem esperança. As instituições políticas têm baixo nível de aprovação. Não é para menos. Os indicadores sociais são assustadores. Pobreza, saúde precária, desemprego, uberização, informalidade e outras mazelas, atingem a maior parte da população. As camadas médias sofrem com a violência urbana e a insegurança em relação ao emprego e a renda. A elite econômica se refugia em guetos disfarçados de oásis, cercados de grades por todos os lados. A falta de perspectiva, de emprego e de renda acaba atingindo todas as classes e camadas sociais, embora, como sempre, penalize com mais rigor os mais pobres.

É verdade que não somos um país atrasado do ponto de vista econômico. Mas também estamos longe do pleno desenvolvimento. Paramos no meio do caminho. Nesses últimos 40 an0s o crescimento da renda per capita foi de 0,7% ao ano. Um quase nada. Já no período anterior, entre 1930 e 1980, o PIB cresceu, em média, 6,0% ao ano (1). Sem dúvida, uma taxa de crescimento chinesa. Não se pode dizer que não houveram progressos nas últimas quatro décadas. Entretanto, quando comparamos o Brasil com outros países que se desenvolveram recentemente, parece que ficamos parados. Mas afinal, quais são as razões para essa estagnação? Porque paramos?

Não existe uma resposta simples para essa pergunta. Este artigo pretende analisar algumas questões que, do ponto de vista institucional, podem ter sido decisivas para a formação do quadro desolador em que vivemos.

Já há algum tempo, a Ciência Econômica considera as Instituições de um país como uma peça chave no desempenho de sua economia. Nas últimas décadas, o estudo das relações entre as Instituições e a economia ganhou muito destaque e deu a Douglass North o Prêmio Nobel de 1993. Como escreveu North, em seu livro “Institutions, Institutional Change and Economic Performance”,“A História importa. Ela importa, não somente, porque podemos aprender com o passado, mas porque o presente e o futuro estão conectados ao passado pela continuidade das instituições sociais. As escolhas de hoje e de amanhã são moldadas pelo passado” (2).

Com base nos dados do último Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU (3), pode-se caracterizar como países desenvolvidos aqueles que têm um IDH muito alto (maior que 0,8) e uma renda per capita superior a US$ 30 mil (em paridade de poder de compra). Com esse critério, 45 países estão nessas condições. Desse total, 38 são democráticos e a maioria esmagadora é parlamentarista ou, em alguns casos, semipresidencialista. As duas únicas exceções são os Estados Unidos da América e a República de Chipre, este, um pequeno e belo país numa ilha do Mediterrâneo. Ambos são presidencialistas. Deve-se ressaltar que a classificação adotada para países desenvolvidos é um pouco arbitrária, mas se tomarmos outras classificações como as do Banco Mundial ou do FMI a conclusão não será muito diferente: o regime político dominante entre os desenvolvidos e democráticos é o parlamentarismo ou uma de suas variantes.

Por sua dimensão, longevidade e proximidade com o Brasil, o sistema americano merece nossa atenção.

O presidencialismo norte americano

Nos EUA existe uma sólida tradição bipartidária que divide o país ao meio do ponto de vista eleitoral. Quando um presidente é eleito ele carrega consigo, no mínimo, algo próximo a metade do Congresso. Sua base de sustentação já começa com um número expressivo de parlamentares. Mesmo quando o Presidente não conta com uma maioria no Congresso, a diferença em relação à oposição é muito pequena, o que facilita eventuais negociações.

Adicionalmente, a derrubada de um veto presidencial exige a expressiva maioria de 2/3 dos votos. A simples existência desse dispositivo lhe assegura um elevado poder de barganha nas negociações, já que os parlamentares sabem que o Presidente usará o poder de veto em caso de derrota. E esse veto dificilmente será anulado pelos opositores, tendo em vista o equilíbrio entre os dois partidos.

Outro instrumento igualmente poderoso são as Ordens Executivas. Podem ser emitidas pelo Presidente em uma vasta gama de assuntos. Kenneth Mayer em seu livro “With the Stroke of a Pen: Executive Orders and Presidential Power” (4) relaciona oito categorias para as cerca de 5.800 Ordens Executivas que foram emitidas no período de 1936 a 1999. Criação, extinção ou transferência de atribuições de órgãos da administração, declaração de estado de emergência, criação, alteração ou extinção das áreas ou reservas públicas e política interna, incluindo energia, meio ambiente, direitos civis, economia e educação são algumas delas. Muitas trataram de segurança nacional e relações externas, como a que recentemente determinou o retorno dos EUA ao Acordo de Paris. Além disso, as Ordens Executivas dão ao Presidente a capacidade de tomar a iniciativa quando algum assunto ainda não está regulado por lei. Quando o Congresso resolve legislar, os efeitos da Ordem Executiva já estão bem estabelecidos, limitando a ação parlamentar.

Essas características do sistema americano, notadamente o equilíbrio bipartidário, o alto poder de veto e as Ordens Executivas, criam condições para que o Presidente, junto com o seu partido, cumpra o programa de governo que o elegeu.

Muito provavelmente, por influência cultural dos EUA a América Latina adotou o presidencialismo desde o nascimento de suas Repúblicas.

O presidencialismo brasileiro

Uma das principais diferenças entre o presidencialismo brasileiro e o americano, tem sido a proliferação partidária. O crescimento do número de partidos desde o término da ditadura militar é bastante expressivo. Logo após o fim do bipartidarismo, nas eleições gerais de 1982, concorreram 5 partidos políticos. Em 1994 na eleição de FHC já haviam 15 partidos, subindo para 28 na eleição da Dilma em 2014. Hoje estão registrados no Tribunal Superior Eleitoral 33 partidos.

Além do aumento do número de partidos, o sistema tornou-se cada vez mais pulverizado. Como referência, vale destacar que em 1982 os dois maiores partidos detinham 84,9% da representação na Câmara, enquanto que com FHC esses mesmos maiores partidos foram reduzidos a 38,6%. Em 2014, com a Dilma, representavam 32,4% e hoje os dois maiores partidos detêm apenas 20,6%. Nessas quatro décadas o número de partidos aumentou muito enquanto a representatividade de cada um deles despencou. Nesse quadro, a construção de uma base parlamentar é bastante difícil, mesmo para presidentes com grande capacidade de articulação política. Para presidentes com baixa capacidade de articulação, essa tarefa é quase impossível. Não à toa, desde a democratização, dois deles sofreram impeachment e o atual, para evitar a queda, entregou a articulação política e a condução do governo aos líderes do Congresso. Formou-se uma espécie de presidencialismo-parlamentarista muito confuso e disfuncional.

Deve-se acrescentar que, no Brasil, os vetos presidenciais podem ser derrubados pela maioria dos Deputados e Senadores eleitos (maioria absoluta), em contraste com os 2/3 exigidos pelo sistema americano.

Mas isso não é tudo. Em termos de autonomia do Presidente, a deterioração ao longo do tempo também é evidente. A Constituição de 1988 criou as Medidas Provisórias (MP) com a finalidade de dotar o Presidente de uma certa liberdade, principalmente em situações de relevância e urgência. De 1988 a 2001 as Medidas Provisórias podiam ser emitidas praticamente sobre qualquer assunto, já que o texto constitucional era muito vago em relação ao significado de relevância e urgência. Eram válidas por 30 dias, mas para não perder a legalidade podiam ser renovadas indefinidamente. Esse período foi marcado por sete tentativas de conter a alta inflação herdada da ditadura militar. Por conta do combate à inflação ou pela facilidade de emissão e renovação das Medidas Provisórias, essa prática atingiu números absurdos. No auge, de janeiro de 2000 até setembro de 2001, foram editadas 134 Medidas Provisórias com mais de 1000 reedições.

Com a justificativa de conter a proliferação de Medidas Provisórias e suas reedições, o Congresso aprovou em 2001 uma Emenda Constitucional que restringiu os poderes do Presidente. Esta Emenda Constitucional relacionou assuntos que não poderiam ser tratados por MP, proibiu a reedição e estabeleceu que se o Congresso não tratasse do assunto em 45 dias a MP trancaria a pauta de votações. Em 2009, uma interpretação do Presidente da Câmara, referendada pelo STF, acabou com o trancamento da pauta, estabelecendo que em 120 dias a MP perderia a validade se não fosse apreciada. Na prática a autonomia presidencial representada pelas Medidas Provisórias perdeu muito de seu valor.

Com a pulverização dos partidos, o menor poder de veto e a incerteza em relação às Medidas Provisórias, o presidencialismo brasileiro se afastou cada vez mais do modelo americano. Com o passar do tempo, o Poder Executivo foi perdendo protagonismo. No entanto, para a opinião pública o Presidente continua a ser o principal responsável pelo sucesso ou fracasso das políticas públicas, embora o poder de fato tenha migrado progressivamente para o Congresso. Muitas vezes, o Presidente eleito começa seu mandato com uma base de apoio bastante reduzida. A partir de sua eleição inicia uma peregrinação em busca de apoio parlamentar com negociações pontuais nem sempre muito republicanas, conhecidas popularmente como “toma-lá-dá-cá”, “troca-troca”, “balcão de negócios” e “orçamento secreto”. O resultado dessa má alocação de poder e diluição de responsabilidade está à vista de todos. Já há algum tempo, o país parece uma nau sem rumo.

Enquanto o Brasil se debate em uma evidente crise de identidade política, não sabendo ao certo se é presidencialista ou parlamentarista, vale a pena examinar com mais detalhes como se estruturam politicamente a quase totalidade dos países desenvolvidos e democráticos.

O parlamentarismo e o semipresidencialismo

No parlamentarismo, o Chefe do Poder Executivo não é eleito diretamente pela população. Ele emerge da base de sustentação no Congresso. Forma-se uma maioria no parlamento com um ou vários partidos que se unem para governar. Essa maioria, estruturada após as eleições, escolhe o Primeiro Ministro e o Conselho de Ministros, encarregados da administração do país. A primeira consequência desse tipo de formação é que fica claro para a opinião pública qual o partido ou conjunto de partidos é responsável pelo sucesso ou fracasso das políticas públicas. Rapidamente a população percebe essa configuração e começa a dar muita atenção aos Partidos e às escolhas para Deputados e Senadores. De outro lado, os partidos políticos passam a entender que sua sobrevivência depende do sucesso do Primeiro Ministro e seus auxiliares diretos, escolhidos por eles.  Outra vantagem desse arranjo é a facilidade de substituição do Primeiro Ministro quando sua atuação não está atendendo às expectativas dos partidos ou da opinião pública. Em geral, neste caso, é necessário que a maioria dos Deputados aprove uma Moção de Censura para derrubar o Primeiro Ministro. Em alguns casos, para que não haja descontinuidade, o Primeiro Ministro só cai quando se estabelece uma nova maioria capaz de substituí-lo.

Essa formação é acompanhada pela escolha de um Chefe de Estado que é um Presidente eleito pela população ou pelo Senado. Nas monarquias parlamentares é um Rei ou uma Rainha. Em geral, o Chefe do Estado tem a função de dissolver a Câmara dos Deputados quando os parlamentares não conseguem estabelecer uma maioria para governar. Neste caso, o Presidente convoca uma nova eleição, na expectativa de que os eleitores irão escolher partidos capazes de constituir uma maioria estável.

Na última metade do século passado, surgiram algumas variantes para o sistema parlamentarista que mudam um pouco a sua essência. A principal delas é o chamado semipresidencialismo. Neste caso, o Presidente, além de poder dissolver a Câmara, tem outros poderes, como o comando das Forças Armadas e a administração das Relações Exteriores. Em alguns casos, divide a responsabilidade pela escolha do Primeiro Ministro com o Parlamento. França e Portugal são os melhores exemplos dessa configuração.

A mãe de todas as reformas

A Ciência Econômica e a experiência internacional, em grande medida, já dispõem de instrumentos para conduzir um país ao pleno desenvolvimento, com inclusão social e sustentabilidade ambiental.

Entretanto, esse caminho é necessariamente político, uma vez que exige um amplo acordo entre as forças representativas da sociedade em torno desse objetivo. E no quadro institucional em que o Brasil se encontra, esse acordo é muito difícil.

Na verdade, as Instituições americanas e de outros países desenvolvidos obrigam a composição política de partidos com proximidade ideológica e programática. Já o sistema brasileiro favorece a pulverização e o fisiologismo. O que o sociólogo Sergio Abranches chamou educadamente de “presidencialismo de coalisão” e FHC, com mais realismo, de “presidencialismo de cooptação”, nada mais é do que uma grave falha institucional.

Para aproximar o presidencialismo brasileiro do norte americano seria necessária uma reforma constitucional profunda e de difícil execução, dando poderes ao Presidente para realizar o programa que o levou ao cargo. Em contrapartida seria necessário que só se inscrevessem candidatos de partidos ou federações de partidos que aglutinassem uma parcela expressiva de Deputados e Senadores. Com essa restrição, haveriam no máximo dois ou três candidatos e o novo Presidente iniciaria o mandato com uma sólida base no Congresso. Esse impedimento evitaria a inscrição de candidatos avulsos, sem sustentação partidária, e faria com que os eleitores dessem mais atenção aos partidos políticos.

Alternativamente, a reforma política poderia instaurar o parlamentarismo ou o semipresidencialismo, como praticado na imensa maioria dos países desenvolvidos e democráticos. Este talvez seja o caminho de menor resistência, já que o enfraquecimento do Presidente e o empoderamento do Congresso parecem irreversíveis. Talvez, para não ser entendido como casuísmo, o novo sistema devesse ser programado para ter início após as eleições gerais de 2030, quando a cláusula de barreira atinge o seu valor máximo (3%). Naturalmente, um amplo acordo político e o reconhecimento de sua importância poderia antecipar essa reforma. A verdade é que não nos restam muitas escolhas. Nenhuma delas é simples, mas como se diz em voz corrente “não fazer nada, não é opção”.

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(1) Cardoso, Ricardo, Desenvolvimento em crise: a economia brasileira no último quarto do século XX, Editora UNESP, São Paulo, 2002.

(2) North, Douglass, Institutions, Institutional Changes and Economic Performance, Cambridge University Press, Cambridge, United Kingdom, 2002.

(3) United Nations, The 2020 Human Development Report, United Nations Development Programme, New York, NY, USA, 2020.

(4) Mayer, Kenneth, With the Stroke of a Pen: Executive Orders and Presidential Power, Princeton University Press, Princeton, New Jersey, USA, 2002.

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(*) Sérgio Gonzaga de Oliveira é engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e economista pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). É colaborador deste blog Democracia e Socialismo, onde tem destacado a importância e os desafios para a retomada do desenvolvimento de longo prazo no Brasil.

Publicado originalmente no blog Democracia e Socialismo em novembro de 2021

abril 14, 2025

URGENTE: A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (II)

 Sérgio Gonzaga de Oliveira (*)

No primeiro artigo dessa série, publicado em março próximo passado, destaquei a importância e a natureza política de um projeto de desenvolvimento para o Brasil. Pretendo agora tentar um diagnóstico que nos dê uma visão abrangente da estagnação da economia nos últimos 40 anos. Com essa intenção são analisadas sucessivamente a acumulação de capital, a formação dos mercados, a dinâmica populacional e a produtividade.

No período de 1930 a 1980 quando as taxas de crescimento superaram, em média, os 6% ao ano, uma das principais ações estratégicas para o desenvolvimento era a política de “substituição de importações”. Durante o “milagre econômico”, na década de 70, essa política foi radicalizada. Havia uma clara exigência de que tudo, ou quase tudo, fosse produzido internamente. Lembro que nessa época trabalhava no Projeto Carajás e a importação era muito difícil. Quando nossas avaliações indicavam que alguns equipamentos não podiam ser produzidos no Brasil, éramos obrigados pela legislação a fazer o que se chamava de "Lista Cacex", onde indicávamos tudo que pretendíamos importar. Esses documentos eram tornados públicos e as Federações das Indústrias, ou órgãos similares na época, concordavam ou não com a importação, indicando fabricantes nacionais nos itens que julgavam que pudessem ser produzidos no Brasil. Não se comprava nada no exterior sem a aprovação dos fabricantes locais. A Petrobrás nesse tempo desenvolvia um extenso programa de capacitação de fabricantes nacionais para suas encomendas.

No final dos anos 70 do século passado o ciclo de substituição de importações se esgotou. O Brasil emergiu para a democracia em meados dos anos 80 com um parque industrial bastante diversificado. Os penosos ciclos de monocultura agrícola tinham, em grande parte, ficado para trás. No entanto, esse extenso período foi marcado por longos anos de ditadura, desrespeito aos direitos humanos, forte concentração de renda e agressões ao meio ambiente.  

 A acumulação de capital

Mas o ciclo de substituição de exportações não foi só isso. Além das rigorosas barreiras à importação, foram atraídos capitais estrangeiros que se instalaram no Brasil sob forte proteção alfandegária e subsídios de toda a ordem. Paralelamente o Estado investiu pesadamente em indústrias de base (siderurgia, química, petróleo e outros) e infraestrutura física (energia e transporte, principalmente), tendo em vista que os capitais privados eram escassos ou não se dispunham a arriscar em projetos de tão longo prazo. Certamente esses investimentos públicos foram tão importantes para esse ciclo de desenvolvimento quanto a política de substituição de importações.  Nesse período, a acumulação de capital pelo Estado não provinha somente da diferença positiva entre as receitas e despesas resultantes de suas atividades correntes. Os capitais estatais, na falta de superávits fiscais significativos, foram obtidos por um misto de emissão de moeda, aumento da dívida pública ou elevação de impostos.

A má notícia para o período atual é que essas fontes extras de recursos estatais parecem esgotadas. Após a hiperinflação do final dos anos 80 e início dos 90 é praticamente impossível, do ponto de vista político, contar com emissão significativa de moeda devido ao risco de retorno da inflação. O endividamento público parece também ter chegado próximo ao limite máximo. Em um país cronicamente instável é preciso conter essa dívida em níveis razoáveis para evitar mais instabilidade futura. O total de impostos, por outro lado, está bem próximo da média dos países da OCDE e a opinião pública tem reagido fortemente à sua elevação.

Com essas restrições, o retorno da capacidade de investimento do Estado brasileiro dependerá da redução das despesas correntes do governo e, principalmente, da retomada do crescimento, que promova o aumento da receita pública. Numa primeira etapa, tudo indica que as fontes possíveis de acumulação de capital e investimentos produtivos estejam no setor privado.

A formação dos mercados: produção e consumo

A grande exceção ao padrão geral de estagnação, observado nas últimas quatro décadas, têm sido as atividades de produção e exportação de commodities agrícolas e minerais. Mesmo com a instabilidade crônica e a falta de perspectivas para o futuro, as exportações de commodities saltaram de 17 para 140 bilhões de dólares nas últimas duas décadas. Enquanto isso, os demais produtos exportados evoluíram de 35 para 99 bilhões, num aumento bem mais modesto (Comex Stat / Ministério da Economia). Esse “milagre” se deve à elevada produtividade obtida por esses setores em comparação com seus competidores internacionais. Na área agrícola e florestal, as condições muito favoráveis do solo e do clima brasileiro, associado às tecnologias desenvolvidas pela Embrapa, são em grande parte responsáveis por essa alta produtividade. Na área mineral e de petróleo não é diferente. Na extração de petróleo a tecnologia da Petrobrás para águas profundas é dominante. Naturalmente, o crescimento do consumo nos países emergentes, principalmente asiáticos, é a outra ponta desse sucesso. As cadeias produtivas das commodities envolvem máquinas, equipamentos, fertilizantes, indústrias de processamento, laboratórios, instrumentos, desenvolvimento genético e tecnológico, pesquisas, serviços financeiros e muitos outros. Tratar a exportação de commodities no Brasil atual como uma atividade “primária” e compará-la com os ciclos de monocultura do período pré-industrial, onde os produtos agrícolas eram obtidos com baixa tecnologia e mão de obra escrava ou semiescrava, parece pouco convincente. Principalmente porque a produção de commodities no Brasil é muito diversificada. São cadeias produtivas que não ficam nada a dever em termos tecnológicos e gerenciais a uma boa parte da indústria de transformação. É um setor muito dinâmico, com alta capacidade de acumulação de capital e fonte de estabilização das contas externas. Merece toda atenção em qualquer planejamento de desenvolvimento de longo prazo.

Já do ponto de vista da formação do mercado de consumo interno o Brasil tem uma grande limitação. Estudos comparativos entre países de desenvolvimento recente mostram que uma melhor distribuição de renda no início do processo favoreceu os emergentes de maior sucesso. O livro “A Ascensão do Resto”, publicado no Brasil pela Editora da UNESP e de autoria da professora Alice H. Amsden do Massachusetts Institute of Technology (MIT), tem uma boa contribuição nessa direção. Nesse ponto a herança oligárquico-escravagista do Brasil colônia, com um histórico de concentração de renda muito elevado, certamente pesou negativamente. De qualquer forma, o Brasil possui ainda hoje uma das piores distribuições de renda do planeta. É o nono país mais desigual do mundo segundo avaliação recente da ONU em um total de 108 nações. É desanimador constatar que a oitava economia do planeta esteja tão atrasada nesse quesito. O Brasil possui grande número de instituições e políticas públicas que operam no sentido da concentração de renda. O mais conhecido é o sistema de impostos, altamente regressivo, onde os mais pobres pagam mais impostos. Mas não é só isso. Muitas outras políticas públicas agravam e eternizam a distância entre pobres e ricos. Além do mais, não devemos esquecer que uma boa distribuição de renda é o melhor caminho para a formação de um forte mercado de consumo interno.

Ainda sobre a formação dos mercados, existe uma séria ameaça ao sistema produtivo que tem sido negligenciada sucessivamente pela sociedade e governos brasileiros. Trata-se da preservação do meio ambiente. No caso da Amazônia os números são alarmantes. Nessas últimas cinco décadas nada menos que 20% da floresta nativa foi destruído (BBC/WWF/2018). Estudos recentes sugerem que a destruição dessa floresta poderá afetar seriamente o clima do centro oeste e do sudeste brasileiro, atingindo mortalmente a agricultura em uma das áreas mais dinâmicas da economia (ARA/INPE/INPA/2014). Embora os estudos não sejam conclusivos a simples hipótese é muito preocupante. Vários outros pontos relacionados ao meio ambiente devem ser cuidadosamente observados no planejamento para o desenvolvimento. Os prejuízos pela negligência podem ser elevados, como se observa no caso das barragens das mineradoras, especialmente em Minas Gerais.

A dinâmica demográfica

No passado recente, o Brasil conviveu com uma expansão populacional significativa. Segundo os censos decenais e projeções do IBGE, entre os anos de 1950 e 2017o país passou de uma população de 51,9 milhões de habitantes para 207,6 milhões, num crescimento de cerca de 4 vezes. Apenas para efeito de comparação, num período equivalente a Coréia do Sul teve um aumento populacional de 2,4 vezes, revelando uma expansão demográfica bem mais modesta (United Nations Data).

A explosão populacional nesse período não foi um fenômeno demográfico único. Foi acompanhada por uma intensa migração do campo para as cidades. Em 1950 a população urbana brasileira era de cerca de 36% do total. A grande maioria morava no campo. No espaço de 60 anos a situação se inverteu e a população das cidades passou para 84% do total (IBGE).

Esse duplo fenômeno provocou uma imensa oferta de força de trabalho nas cidades brasileiras, quase que simultaneamente ao desenvolvimento industrial conduzido pela política de substituição de importações e pesados investimentos estatais. Como era de se esperar os salários foram bastante rebaixados. Marx diria que se formou nas cidades brasileiras um gigantesco “exército industrial de reserva” que, dada a sua amplitude, promoveu uma elevada concentração de riqueza nas mãos das elites e um forte empobrecimento nas camadas populares. Tinha-se instalado o caldo de cultura para a continuidade da péssima distribuição de renda que herdamos do ciclo oligárquico-escravagista do Brasil colônia.

Entretanto, esses dois movimentos populacionais estão chegando ao fim. As projeções do IBGE indicam que em duas décadas a população se estabilizará. O grande desafio para um projeto de desenvolvimento inclusivo, daqui em diante, é incorporar à cidadania e ao sistema produtivo essas populações marginalizadas. Cabe lembrar que outro movimento importante surgiu no rastro da estabilização demográfica: o envelhecimento da população que cria pressões adicionais na saúde e na previdência social. A compensação dessas pressões deverá ser obtida pelo aumento da produtividade dos trabalhadores na ativa e não pela redução do valor das atuais aposentadorias, principalmente dos mais vulneráveis que na maioria das vezes fica aquém da sobrevivência.

Os desafios da produtividade

A persistente estagnação de longo prazo da produtividade na economia brasileira tem preocupado muito os economistas. A produtividade não é um fenômeno simples. Abrange pelo menos duas dimensões intimamente relacionadas: a produtividade interna às unidades de produção e aquela que poderíamos denominar de produtividade básica da economia. A produtividade interna está associada à tecnologia e às praticas gerenciais adotadas por cada fabricante. Já a produtividade básica é formada, em grande medida, por fatores externos aos produtores. Na sua face mais visível, depende da existência de um sistema nacional de tecnologia, organizado para apoiar ativamente o setor produtivo na incorporação de inovações tecnológicas e gerenciais. Nesse ponto o Brasil deixa muito a desejar. Tradicionalmente, os investimentos em tecnologia são baixos e a industrialização brasileira não saiu da primeira fase, onde as novas tecnologias são sistematicamente importadas.

Mas não é só isso. A produtividade básica depende muito do estágio em que se encontra a infraestrutura física (energia, comunicações e transportes) que age transversalmente, elevando a produtividade de todos os setores. Nesse aspecto o Brasil está muito aquém de suas necessidades. A energia é cara, as comunicações são precárias e o transporte de cargas é majoritariamente rodoviário.

Mais significativa ainda é a péssima situação da infraestrutura social (educação, saúde, habitação, saneamento e mobilidade urbana). Com educação de baixa qualidade, saúde precária, morando em condições sub-humanas, num ambiente insalubre e perdendo longas horas no percurso casa-trabalho, o trabalhador médio brasileiro é um herói anônimo. É inacreditável que consiga produzir alguma coisa. Alta produtividade, nem pensar.

Por fim, mas não menos importante, a eficiência do Estado afeta muito a produtividade básica. Nesse ponto, o Brasil fica muito mal na foto. O Estado brasileiro é burocrático, lento e confuso na condução dos assuntos de sua responsabilidade. Um exemplo escandaloso é a lentidão da justiça. Os processos judiciais demandam muito tempo e energia das empresas e cidadãos. O confuso e burocrático sistema de impostos é também outro fator de baixo rendimento.

A rigor esta análise deveria incluir outros aspectos da realidade atual, mas para não alongar muito o texto, fico por aqui. Acredito que esses sejam os pontos mais relevantes. E com base neste diagnóstico, bastante simplificado é verdade, pretendo no terceiro e último artigo dessa série encaminhar algumas sugestões de diretrizes estratégicas que nos ajudem a construir um projeto político de desenvolvimento de longo prazo.

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(*) Sérgio Gonzaga de Oliveira é engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e economista pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)

Publicado originalmente no blog Democracia e Socialismo em maio de 2019

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